sexta-feira, 8 de março de 2013

Estado deve orientar investimento privado em áreas importantes, diz brasilianista

Estado deve orientar investimento privado em áreas importantes, diz brasilianista



ELEONORA DE LUCENA

DE SÃO PAULO



Para desemperrar o crescimento, a presidente Dilma Rousseff convoca empresários e pede investimentos. Na visão do brasilianista Peter Evans, a iniciativa é insuficiente: a lógica empresarial, voltada para os resultados financeiros, é outra. A chamada burguesia nacional quase não existe --tem agora interesses globalizados, mais distantes dos interesses nacionais.



Evans fez estudos clássicos sobre a relação Estado/empresas no Brasil. Morou no Brasil nos anos 1970, deu aulas na UNB e atuou no Cebrap nos anos 1980.



Seu "A Tríplice Aliança" (1979) dissecou o tripé do modelo brasileiro de então, que reunia capitais estatais, nacionais e estrangeiros. Em 2001, o sociólogo formado em Harvard voltou ao assunto em "Autonomia e Parceria", discutindo o papel do Estado no desenvolvimento, comparando situações no Brasil, na Índia e na Coreia.



Professor emérito da Universidade da Califórnia, em Berkeley, ele advoga que o governo deve ampliar sua aliança em torno de um projeto nacional, incluindo organizações sindicais, associações, intelectuais, e visando o desenvolvimento das capacidades humanas.



Nesta entrevista, concedida por telefone de Nova York, Evans, 68, defende que, apesar das dificuldades, é fundamental para o país ter um projeto nacional. E que o setor público é chave nesse processo. Em março ele estará no Brasil para participar das comemorações dos dez anos do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o "Conselhão".



*

Folha - Como o sr. avalia o desenvolvimento brasileiro hoje?



Peter Evans - O importante é evitar o grande domínio de uma versão dominada pela obcessão da acumulação de capital, que privilegia a produção de bens manufaturados. Temos que ter outro ponto de partida: o crescimento das capacidades humanas para produzir para o bem-estar do ser humano.



O sr. a indústria perde importância? Mas não é nesse setor que estão os melhores empregos? Os países desenvolvidos não cresceram com base na indústria?



Sim, os bons empregos são empregos na indústria manufatureira. Mas isso depende da força e da organização dos trabalhadores. Os países que têm desenvolvido a capacidade humana das suas populações produzem bens manufaturados. Mas não é a produção dos bens manufaturados que leva ao desenvolvimento. É o desenvolvimento que leva à produção de bens manufaturados. A indústria manufatureira é uma parte fundamental de qualquer economia. Mas é falso achar que a indústria manufatureira pode ser o único motor de desenvolvimento.



O motor de desenvolvimento é o aumento da capacidade humana de produzir, de pensar, de criar etc. Fazendo isso, o país vai ter uma indústria manufatureira importante para a sua economia. Pensar que desenvolvendo a indústria manufatureira o desenvolvimento virá leva à concentração no papel do capital, e serve aos interesses da elite, pois privilegia o papel dela como dona dessa propriedade produtiva. Ao mesmo tempo esconde a parte mais fundamental da produtividade que é a dos seres humanos que trabalham.



O Brasil é desenvolvimentista?



O Brasil é mais desenvolvimentista do que a grande maioria dos países porque tem investido no setor público, nos serviços públicos. Não quer dizer que o pais seja uma maravilha. Como cidadão norte-americano estou triste porque os EUA estão retirando os investimentos essenciais em educação, no sistema de saúde etc. Estão diminuindo o esforço social nessas áreas imprescindíveis para o desenvolvimento. Por isso os EUA estão perdendo a capacidade criativa, que é o cerne do desenvolvimento que foi construído desde o século 19.



E a China?



A China investiu fortemente em serviços básicos para a população, nas capacidades humanas. Desenvolveu uma população alfabetizada, um sistema amplo de saúde. Na década de 1980, quando o país flexibilizou as regras econômicas, pode aproveitar esses investimentos. Agora a situação está mais duvidosa, porque há um aumento da concentração de renda e a questão é se haverá continuidade nos investimentos fundamentais em saúde e educação.



Qual o papel do Estado na definição desses investimentos?



É fundamental. Porque a racionalidade do setor privado é muito mais facilmente orientada pelo investimento em máquinas do que nas capacidades humanas. Porque o retorno do investimento nas máquinas vai para o dono das maquinas. Mas o retorno do investimento nas capacidades humanas vai para os indivíduos. Mais importante, vai para a sociedade. A apropriação desse retorno pelos os investidores não é tão fácil. Só no longo prazo que se beneficiam. Sem investimento público, que esteja focalizando nos resultados coletivos, não se constrói um sistema de educação efetivo e eficaz.



O sr. não acha fundamental estimular a indústria?



O crescimento industrial é mais um fator, mas não é o fundamental. O fundamental é investir nos setores de serviços que estimulam o crescimento das capacidades da população. Se a opção é por concentrar esforços na indústria, o setor privado fica com mais poder e isso não vai favorecer os investimentos fundamentais. Vai enriquecer talvez o setor privado.



Em "A Tríplice Aliança" o sr. estudou em profundidade a articulação entre Estado e capitais nacionais e estrangeiros na constituição do modelo brasileiro. Essa fórmula daria certo hoje?



O setor privado não vai investir nos ramos mais importantes sem alguma disciplina e coordenação por parte do Estado. O Estado pode desempenhar um papel importante, fazendo incentivos para que o capital privado invista nas novas fronteiras de produção. A racionalidade do retorno privado não é suficiente para canalizar os investimentos nas áreas de maior risco, que são mais novas e interessantes em termos da agregação de valor maior.



Qual o papel dos empresários?



O país tem que reconhecer no mundo atual mudou. A famosa burguesia nacional quase não existe. O capital tem ligações muito mais globais do que na década de 1970. Ao mesmo tempo, o papel do setor financeiro se tornou muito mais dominante. É muito mais difícil para o Estado construir hoje em dia uma aliança local em torno de um projeto nacional. Os projetos do capital são mais orientados para os retornos globais. A ideia de que se pode construir um projeto nacional tendo por base uma aliança entre o capital e o Estado não funciona na economia globalizada atual.



É por isso que o Estado deve fazer uma aliança muito mais ampla do que a velha tríplice aliança. Deve incluir uma faixa muito ampla da sociedade civil e as pessoas menos privilegiadas. Se não, o projeto nacional não funciona. Porque as pessoas menos privilegiadas na sociedade são as que têm o interesse fundamental nesses investimentos no cerne do desenvolvimento, nas capacidades humanas. A velha aliança Estado-capital é muito menos eficaz; é necessária uma aliança mais ampla. Isso vale para o Norte e para o Sul.



Por isso a desnacionalização avança na economia?



Todos os países do mundo estão virando mais desnacionalizados. É outro lado da moeda de "globalização." O Brasil talvez seja um dos países menos desnacionalizados no mundo atual. Mas, sem duvida, os efeitos da globalização se registram no Brasil. Isso quer dizer que os capitalistas brasileiros são cada vez mais capitalistas cosmopolitas que definem os seus interesses num âmbito global. A famosa burguesia nacional, das teorias do começo do século 20, é agora uma quimera.



Como ocorrem as diferenças de interesses?



A diferença entre as pessoas e o capital é que o capital pode ser global. As pessoas podem viajar, mas, no final das contas, elas têm raízes com um país e têm interesses no melhoramento do bem estar humano nesse país. As pessoas têm interesses nacionais. Para o capital, os interesses nacionais são muito mais duvidosos. A sociedade tem naturalmente um projeto nacional; o capitalista, não. Então, se o estado quer ser parte de um projeto nacional, tem que incluir uma parte maior da sociedade, que tem que ter algum peso nas decisões do Estado, na alocação dos recursos. Assim, vai haver investimento adequado nas áreas para construir a capacidade humana necessária ao desenvolvimento.



O sr. pesquisou os protagonistas do setor empresarial brasileiro nos anos 1970. O Brasil não tem mais uma burguesia nacional?



Existem capitalistas brasileiros muito poderosos globalmente. Nesse sentido, existe essa burguesia nacional. Mas ela hoje em dia tem os interesses globais. Gerdau, por exemplo, é uma empresa brasileira muito poderosa globalmente, que não pode ver o mundo em termos de um projeto nacional. A empresa tem que ter um projeto global. Está desatualizada essa velha visão do capital nacional, de que o capital localizado na nação tinha interesses sobretudo na economia nacional. Isso não quer dizer que o capital brasileiro não tem uma relação diferente com o Brasil do que o capital sediado na Suíça ou nos EUA. Mas a diferença entre a visão do capital brasileiro e a do sediado em Nova York está cada vez menor.



Há ainda um espaço para um projeto nacional?



É fundamental ter um projeto nacional, ter alguma direção para onde a nação precisa ir para ter um futuro melhor. A transformação da economia política global problematiza a construção de projetos nacionais. No mundo atual, projeto nacional requisita mais vontade e esforço político. As elites privadas que controlam o poder econômico estão cada vez mais atraídas pelas estratégias globais --até nos casos em que essas estratégias globais não beneficiam os interesses gerais da cidadania. Os cidadãos ordinários estão mais enraizados na comunidade nacional. Portanto, a organização e a mobilização dos interesses coletivos desses cidadãos ordinários é cada vez mais fundamental para a construção de um projeto nacional.



O crescente poder do capital global e a integração do capital local às redes de capitais transnacionais tornou a associação mais estreita com o capital mais arriscada e mais difícil.



Por isso é mais difícil hoje de desenhar um projeto assim?



Desenhar um projeto efetivo depende da participação da população. A época em que a elite desenhava um projeto por si, sem participação maior da população, já era. Sem participação efetiva organizada é impossível desenvolver um projeto nacional.



No passado bastava reunir empresários no escritório do ministro da Fazenda.



O que aconteceu na época da ditadura dependeu de investimentos anteriores, de um projeto nacional que já tinha se desenvolvido. Não é correto atribuir uma influencia maior desse período em si sobre a grande trajetória brasileira. Naquele tempo se desenvolveu um projeto da elite para os interesses da elite. Um projeto só da elite não funciona a longo prazo. É uma das razões que explicam por que a ditadura não conseguiu sobreviver. Era um sistema elitista de fazer decisões, que foi ficando cada vez mais corrupto, ineficiente e sem ideias.



E concentrou renda.



Sim. Virou um sistema de decisões fechado, sem informação suficiente, sem visão adequada para tomar decisões efetivas.



Como seriam os novos pilares para o desenvolvimento?



Tem que se fundar na ideia de que o desenvolvimento é principalmente o das capacidades humanas, que precisa alcançar uma faixa bastante ampla da população. Isso não vai ocorrer se a população não tiver uma voz organizada no sistema político.



Isso significa incluir, por exemplo, sindicatos, associações, cientistas na discussão do projeto nacional?



Exatamente. E a sociedade precisa ter uma participação ativa.



A presidente está se reunido com empresários para pedir mais investimentos. Essa é uma estratégia adequada?



Não é possível mudar o raciocínio dos empresários simplesmente pedindo. Eles têm um raciocínio próprio. O raciocínio do capital é cada vez menos um raciocínio de projeto nacional. O raciocínio global do capital é cada vez mais direcionado a encontrar possibilidades de obtenção de retornos financeiros. Pedir não funciona nem no Brasil nem nos EUA. A China tem vantagem porque lá o Estado ainda controla uma boa proporção do investimento e não depende completamente do raciocínio do setor privado.



O que o governo deveria fazer?



Os investimentos fundamentais para o desenvolvimento, os investimentos públicos na educação e na saúde _que geram emprego e renda. O setor público tem que ser visto como o centro chave do processo.



E onde buscar dinheiro para isso?



Depende de recolher recursos do capital, da elite. Sobretudo tem que tirar uma parte dos recursos gigantescos que o setor financeiro está acumulando.



O sr. propõe aumentar impostos sobre o setor privado?



Sim. Eles vão dizer que, se forem retirados recursos, não vão investir. Mas, de fato, não estão investindo na criação de empregos. Então essa ameaça... É claro que é um jogo complicado, porque eles têm a possibilidade de abandonar completamente a nação, mudar todo o dinheiro para outros lugares. Mas, apesar disso, para ter investimento público tem que ter recursos públicos. E, para isso, tem que haver uma alocação dos recursos totais da sociedade.



O baixo crescimento Brasil ainda está ligado aos juros altos?



Juros altos é um grande problema. Um dos aspectos positivos da política recente do Brasil é que o governo está fazendo esforços em reduzir juros. É uma luta contra o poder do setor financeiro.



Qual o peso do câmbio nesse contexto?



É um problema das regras da economia global. Não é um problema que o Brasil criou. O Brasil tem que sobreviver nesse mundo das finanças globalizadas com regras que não funcionam.



O sr. está otimista com o Brasil?



Comparativamente, o Brasil é um dos países que tem as perspectivas mais otimistas. Em relação aos EUA, o Brasil avançou muito. Os EUA estão regredindo, pois não estão investindo como deveriam no setor público, que está falido em termos de recursos. A desigualdade está crescendo de uma maneira brutal e acelerada. O sistema político não está funcionando. É apavorante.